A Pedra

    Quando era menina ouvi várias vezes que ita, em tupi guarani, significava pedra. Nunca entendi porque me ensinavam isto dado que este conhecimento nunca acrescentou nada em tudo que aprendi vida afora. Não era como ter aprendido que pediatra vinha da palavra grega “paidós”, que significa criança, ou geriatra que vem de “gerontós”, que significa velho.Depois de inúmeras elucubrações, cheguei a conclusão que a repetição tinha sido para eu me dar conta de como se usava a palavra pedra com uma freqüência assombrosa.

 

 

    Lembro-me de quando minha mãe fazia balas de chocolate. Ela dizia que a receita mandava que quando os ingredientes que eram levados ao fogo tomavam o ponto de bala precisava despejar numa pedra mármore, untada com manteiga. Por vezes lamentava que o ditado: “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, correspondesse à realidade, pois, uma torneira de filtro que pingava sobre a pia tinha tornado o mármore áspero naquele lugar. Isto a aborrecia. Ela gostava demais da sua pia em pedra mármore. Na cozinha também tinha uma pedra de amolar. No box do chuveiro sempre havia uma pedra pome, que servia para deixar a sola do pé bem lisinha.

 

 

    Entretanto, as vezes, não entendia quando minha mãe dizia que sua sogra, minha avó, era uma pedra no sapato dela. Não via a minha mãe mancar quando falava desta pedra. Também reclamava que não dava para falar nada para minha avó, pois esta logo vinha com quatro pedras na mão, mas nunca vi as tais pedras. Outra queixa da minha mãe era de que tentar convencer minha avó sobre alguma coisa com a qual não concordava era querer tirar leite de pedra, não adiantava mesmo, ela nunca mudava de idéia. Dizia ainda que por mais que tentasse sua sogra nunca punha uma pedra em cima do assunto em que divergiam, continuava a falar, falar, sem parar.Todas estas pedras eram um mistério para mim, mas não sei porque minha mãe ria quando eu falava deste assunto.Eram tantas as referências a pedras.

 

 

 

    Um dia ouvi minha avó se queixando de que não dormira por causa dos latidos do cachorro, e minha mãe disse que não tinha ouvido nada, pois dormira feito uma pedra, isto me embasbacou mais ainda. Não entendia como uma pedra podia dormir. Quando minha avó se queixava do cachorro, dizia que minha mãe não se importava que ela ficasse uma noite inteira sem dormir porque tinha um coração de pedra. Eu sabia que minha avó queria que a minha mãe desse o cachorro, pois não gostava de animais domésticos, mas como uma pessoa podia ter coração de pedra? Já tinha ouvido falar que um tio tinha ido ao hospital por causa de pedra nos rins, mas definitivamente alguém ter coração de pedra eu não conseguia entender. Agora, difícil mesmo era entender o que minha avó queria dizer quando falava que minha mãe não dava descanso para meu pai e praticamente o obrigava a carregar pedra enquanto descansava. Meu pai era um homem muito ativo, estava sempre fazendo alguma coisa em casa, quando não trabalhava. Mas, nunca vi meu pai carregando pedras. Minha avó também era uma pessoa muito econômica e virava e mexia dizia muito indignada que tinham pedido por alguma coisa que ela queria comprar, não se recordava ao certo, mas era coisa de mil e lá vai pedrada. O espantoso é que minha mãe entendeu direitinho o que ela queria dizer. Em uma ocasião fiquei muito surpresa quando minha mãe não se irritou com minha avó, que tinha derrubado no chão uma caixa de alfinetes. Não sei aonde minha mãe guardava, mas rapidinho ela apareceu com uma pedra-imã e todos os alfinetes ficaram grudados nela. Acho que ela não se irritou porque foi fácil pegar os alfinetes.

 

 

 

 

    Também quando criança ouvi meu pai falando que um colega de trabalho tratava a mulher como um homem da pedra lascada. Como naquela época criança não devia ficar ouvindo a conversa de adultos, levei muitos anos para poder compreender como era o comportamento do homem da pedra lascada.

    Se havia uma coisa da qual gostava muito, naquela época, era quando chovia granizo, que para mim eram pedras de gelo. Às vezes parecia até que elas iam quebrar os vidros das janelas e faziam um barulho enorme num telhado diferente que a gente tinha em casa. Quando a chuva parava eu corria no quintal para pegar algumas pedras antes que elas derretessem.

 

 

    Quando fiquei um pouco maior fui estudar numa escola de freiras. Como eu era aluna interna, assistia à missa todos os dias, e quando aprendi a ler, a acompanhava num missal, e todos os anos ouvia e lia o Evangelho onde São João narrava a história da mulher adúltera, ( também não sabia o que era isto), que a multidão exigia seu apedrejamento. O Mestre, como eles chamavam Cristo, erguia-se e dizia: “Quem não tiver pecado atire a primeira pedra.” As freiras, quando davam aula de catecismo escreviam na lousa: Jo 8:7.

    Essa escola logo se expandiu e lançou a pedra fundamental para a construção de uma filial em um bairro muito chique. Elas explicaram às alunas, porque a escola era só de meninas, que o grande benemérito dessa obra, quando morresse, provavelmente teria escrito na pedra tumular, as várias qualidades e sobretudo o espírito generoso que sempre o marcaram.

 

 

    Os anos se passaram e comecei a ter outros interesses. Música era um deles. Gostava de uma música composta por Ataulfo Alves e Mário Lago, cujo título era : “atire a primeira pedra”,referindo-se aquele que “não sofreu por amor”. Algumas décadas depois, numa linda composição, o poeta-compositor Chico Buarque de Holanda também usou atire pedra, embora num outro contexto, na música: Geni e o zepelim. A cidade, que só Geni poderia salvar da destruição se servisse ao comandante do zepelim, em romaria foi beijar sua mão, mas depois que o zepelim se foi, e a cidade então estava salva, em coro, seus habitantes puseram-se a cantar: joga pedra na Geni.

 

    Outro dia dei de presente a um sobrinho o livro: Harry Poter e a Pedra Filosofal. Tive algum trabalho para explicar o que era essa pedra, pois ele tem só 13 anos. Simplifiquei o máximo que pude dizendo que era a matéria primordial, ou o princípio fundamental das coisas, que os alquimistas chamavam de Pedra Filosofal. Tive que explicar também o que era alquimista, mas acho que ele entendeu.

 

 

    A pedra também se faz presente nas artes. O escultor Aleijadinho usou a pedra-sabão em inúmeras de suas obras.

O poeta Carlos Drumond de Andrade a usou magistralmente, e não vejo melhor final para esta crônica senão a reprodução de:

 

 

No meio do caminho

    No meio do caminho tinha uma pedra,

    Tinha uma pedra no meio do caminho

    Tinha uma pedra

    No meio do caminho tinha uma pedra

    Nunca me esquecerei desse acontecimento

    Na vida de minhas retinas tão fatigadas

    Nunca me esquecerei que no meio do caminho

    Tinha uma pedra

    Tinha uma pedra no meio do caminho

    No meio do caminho tinha uma pedra.

 

   Onde mais encontraria um final tão lindo?